terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Paciência - Hospitalidade - Responsabilidade

Por Isabel Baptista
Universidade Portucalense

Desafiada por mais de uma vez a escrever umas linhas para a Página, chego de novo à data limite sem o texto prometido. Não sei bem porquê, mas por mais que corra o tempo nunca me chega. Foi, pois, sobre esta aflitiva falta de tempo que resolvi escrever. Mais do que a aproximação das férias, mais do que a antecipação do gozo dessas horas de liberdade em que, finalmente, vamos ter tempo, interessa-me reflectir sobre o sentido, ou ausência dele, desta corrida diária contra o tempo.


Vivemos na era tecnológica, a Internet permite-nos o acesso quase instantâneo à informação mais longínqua e de dia para dia tudo parece ficar mais perto e mais fácil. Dispomos de aparelhos ultra sofisticados, deslocamo-nos com maior velocidade e até temostelevisão em movimento. Continuamos, apesar disso, cheios de pressa e ficamos furiosos quando alguém nos deixa pendurado, à espera. As horas mortas enchem-nos de pânico, por isso recorremos a pequenos truques para entreter o tempo. Porque o tempo entretido custa menos a passar ... E quando o vazio dessas horas se torna insuportável, podemos sempre adormecê-las, ou afogá-las.

Há também horas felizes. Foi numa delas que, a propósito de uma comemoração de vinte anos de curso, reencontrei há dias alguns dos rapazes e das raparigas do meu tempo. Porque na verdade o tempo a que chamamos nosso é o tempo da juventude, o tempo do sonho e da generosidade. O tempo em que acreditamos nas infinitas possibilidades dos amanhãs ainda distantes.


Estes encontros revivalistas são cada vez mais comuns, e ainda bem. Nostalgia relativamente ao que fomos ou ao que nunca chegamos a ser? Falta-nos tempo para nos pormos em questão, para nos interrogarmos. E sem interrogação não há abertura ao infinito ilimitado do tempo. Como sublinha Emmanuel Levinas, as recordações, à procura do tempo perdido, proporcionam sonhos, mas não devolvem as ocasiões perdidas. A verdadeira temporalidade, aquela em que o definitivo não é definitivo, supõe a possibilidade, não de recuperar tudo o que se teria podido ser, mas de deixar de lamentar as ocasiões perdidas perante o infinito ilimitado do tempo. Não se trata de comprazer-se num qualquer romantismo dos possíveis, mas de escapar à esmagadora responsabilidade da existência que se transforma em destino, de voltar atrás na aventura da existência para ser no infinito. Inspirando-se na experiência biológica, mas indo para além dela, este filósofo recorre à noção de fecundidade para descrever a relação do homem com a temporalidade. Na paternidade vive-se a espantosa experiência de relação com outra vida, com outra história, simultaneamente nossa e radicalmente outra. O que define o modo de ser humano no mundo prende-se com essa capacidade de relação com o que nos transcende e nos impele a ir sempre mais além. A verdade do tempo não cabe nos relógios nem nos calendários. Não é redutível à linearidade de instantes equivalentes entre si e totalmente mensuráveis. O essencial do tempo reside na possibilidade de ruptura e de recomeço que a ideia de fecundidade representa.


Só que esta abertura à juventude do tempo exige, por parte consciência, paciência hospitalidade. Paciência porque é preciso darmo-nos tempo para amarmos a vida com tudo o que ela oferece em termos de fruição. É preciso tempo para preguiçar ao sol, para apreciar a boa comida, para gozar um bom livro, para ter a conversa em dia e para saborear, no infinito de cada instante, a ternura dos pequenos gestos. É preciso tempo para partir à descoberta da cidade e enamorarmo-nos dela com a emoção de um primeiro encontro. Eu que vivo há mais de duas décadas nesta cidade, e que julgo amá-la profundamente, fui noutro dia confrontada com a minha ignorância quando pretendia exibir a cidade a uns amigos de fora.

Hospitalidade porque é preciso que a consciência se abra para deixar entrar, para deixar-se ensinar permanentemente. É preciso que a consciência se disponha a acolher a interpelação do tempo, arriscando o seu sossego e a sua comodidade. Sacrificando a segurança dos dias repetidos mas vivendo, em contrapartida, a relação com o diferente como desejo, descoberta, e reinvenção de si. Não é este afinal o sentido de toda aventura educativa?

Ligada à paciência e à hospitalidade, assim definidas, a necessidade de dar tempo ao tempo não significa quietude mas inquietude. No acolhimento da interpelação do tempo está em causa a ruptura com a rotina e com o egoísmo, dimensões que nos envelhecem e empobrecem a vida. Uma interpelação por vezes terrivelmente incómoda que nos é dirigida por rostos marcados pela dor, pela fome e pela violência. Rostos sem brilho de gente demasiado ferida na sua alma, na sua carne, na sua humanidade. Daí que a hospitalidade, enquanto experiência de abertura e de acolhimento, constitua o primeiro movimento em direcção ao compromisso. Um movimento que permite passar do eu sou, celebrado desde sempre pela tradição ocidental, para o eis-me aqui próprio da responsabilidade, como salienta Levinas em toda a sua obra.


A responsabilidade é sem dúvida uma palavra chave nos tempos que vivemos. Tempos incertos, feitos de privação, de sofrimento e de indiferença. Tempos que nos obrigam a pensar e a agir para lá da esfera das nossas necessidades e dos nossos interesses. Feitos também de esperança e de coragem. É preciso, pois, que as consciências se deixem afectar profundamente pelo espírito do tempo. Com paciência, hospitalidade e responsabilidade. Com capacidade de desprendimento em relação às formas mais sedentárias da existência, de desprendimento em relação aos pequenos afazeres que atravacam os nossos dias e estreitam os nossos horizontes. A juventude realiza-se como amor à vida e como atenção ao mundo e aos outros. Realiza-se na vontade de fazer a diferença, recusando chamar horas mortas a essas horas em que não nos resta mais do que olhar, escutar, ver e sentir. E se tivermos de correr que seja a favor do tempo. Porque a vida é curta e o tempo não perdoa.


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